Bebê Reborn: substituição lúdica ou sintoma?

Vivemos tempos em que a realidade parece diluída em múltiplas camadas de representações, e o caso das mulheres adultas que colecionam “bebês reborn” não é um fenômeno isolado. Ao contrário, as bonecas hiper-realistas, encomendadas como uma gestação simbólica, em lojas que se denominam “maternidades” revelam uma das faces mais intrigantes da pós-modernidade: a substituição simbólica do real pelo idealizado, numa tentativa de anestesiar o vazio e o desamparo ontológico que atravessa o ser humano contemporâneo. A questão vai muito além da simples posse de um objeto; ela toca o núcleo do que é ser mulher, mãe – ou homem e pai, por que não? Sobretudo, um brinquedo pode interrogar a pessoa por seus desejos não integrados.

“Girl punishes her dolls” – Overbeek

A Psicanálise, especialmente em as reflexões de autores como Winnicott e Ferenczi, nos ajuda a pensar no fenômeno do “bebê reborn” como uma manifestação da necessidade de reparação de traumas primordiais, sobretudo os relacionados à maternidade frustrada, à infertilidade ou à perda. Entretanto, mais do que uma expressão de luto, há uma camada mais profunda que a Ontoanálise convida a explorar: o que está sendo deslocado no ato de se apegar a um bebê que não respira, mas que simula a experiência de cuidar? Quando a maternidade se torna uma performance para o olhar externo e para o próprio olhar, o desejo genuíno de maternidade pode ser desmerecido, e a pessoa talvez acabe prolongando a brincadeira a um nível de estranhamento para viver o simulacro de vínculo, o eco de algo que não encontra espaço para se tornar realidade.

Na constelação de experiências contemporâneas, o bebê reborn virando meme no brincar de pessoas adultas se apresenta como uma imagem simbólica potente: uma tentativa legítima, ainda que complexa, de responder ao anseio humano por conexão, cuidado e sentido. Ao invés de um simples brinquedo, ele adquire a aura de um mediador de experiências e afetos, uma presença que permite à mulher — ou à pessoa que o adquire — acessar espaços subjetivos de acolhimento, ternura e elaboração emocional. E o melhor, com um nível de controle privilegiado. Nesse movimento, o bebê reborn revela uma face da nossa condição pós-moderna: a possibilidade de construir significados singulares em uma sociedade global, em que as fronteiras entre o real, o simbólico e o virtual se entrelaçam e vão se apagando… Como apontaria Heidegger, somos seres lançados no mundo, habitando-o em busca de sentido, e cada objeto pode se tornar uma “coisa” que carrega uma função de ser-no-mundo. O bebê reborn, então, pode ser uma expressão desse cuidado de si, mesmo que momentâneo, mesmo que contraditório. Ao invés de julgar superficialmente, importa reconhecer: há, nessa escolha, uma estratégia de sobrevivência simbólica, um ritual de sentido que tenta suavizar o peso da existência.

A ontologia do ser nos lembra que o verdadeiro encontro com o outro (e com a vida) acontece num espaço de abertura e vulnerabilidade. Quando essa abertura é substituída pelo controle total de um objeto idealizado — seja um bebê de vinil ou qualquer outro substituto — papais e mamães de pets que me desculpem —, perdemos o frescor do encontro real. O fascínio do exílio em fantasias pode se sobrepor, porém não se sustenta diante da imprevisibilidade da vida. Entendendo assim, a experiência do bebê reborn coloca um paradoxo: ao mesmo tempo em que representa um desejo primordial de acolhimento e cuidado, revela de modo igualmente profundo e genuíno o medo do real, o pavor de perder o controle das relações e a dificuldade de habitar o inacabado, o imprevisível, o vivo.

A questão ética e filosófica que emerge é: até que ponto estamos dispostos a habitar a dor e o desejo como experiências genuínas, e não como simulacros de uma vida que poderia ter sido ou de como eu adoraria que fosse? A pessoa que busca o bebê reborn com frequência e insistência muitas vezes está dizendo algo sobre si: sua fragilidade, sua necessidade de vínculo, sua saudade de algo que não se concretizou. E aqui a psicanálise nos dá pistas valiosas: o luto, quando não elaborado, tende a se repetir em muitas formas disfarçadas; o desejo, quando negado ou desviado, se acomoda em objetos substitutivos. Por isso, o acompanhamento terapêutico é tão crucial: para que a pessoa possa diferenciar o desejo genuíno do desejo projetado, e para que encontre, além do objeto, um caminho de sentido.

Ponto de vista prático

Se você que me lê tem uma experiência com as bonecas reborn, ou qualquer substituto simbólico mais bem tolerado socialmente, experimente olhar para si e refletir sobre o que esse desejo vivenciado tem representado. Por que pai ou mãe e não dono? O que isso te diz sobre você? Que história não contada publicamente esta vivência carrega? Um exercício simples como este, de escrita reflexiva e íntima, pode abrir portas para insights transformadores. E, caso encontre uma dor seja intensa demais, buscar um suporte terapêutico especializado pode ser o passo necessário para integrar suas vivências com consciência transformadora. Acesse a secão “contato” e poderei auxiliar-lhe melhor.

Antes de finalizar, recomendo também a visão de meu Mestre de Ontoanálise, que pode levar a mais reflexões importantes, e nada óbvias, a respeito deste assunto. https://www.youtube.com/watch?v=x1HRDnDeHrI&t=31s

Por fim, o “bebê reborn” é um elemento polêmico, só que plenamente possível de nossa época: um tempo que confunde o real com o ideal, que troca presença por consumo ávido, e que muitas vezes mascara dores profundas com objetos que prometem, mas não entregam. A alternativa? Construir um lifestyle mais leve, onde a mente se abre para o autoconhecimento, e o ser reencontra seu sentido e sua vitalidade não numa proposta de ilusão de controle, mas na aceitação radical da vida como ela é: inacabada, imperfeita, e, por isso mesmo, preciosa e única.

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